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Estamos em 2019, no mês de março. O cenário é o Brasil no momento em que se avizinha a homenagem do Dia Internacional da Mulher. Nesse ano, em particular, o digno tributo de dimensão internacional à memória de inúmeras mulheres trabalhadoras, que em diversos momentos da história do mundo “moderno” tiveram a coragem de se irromperem contra os desígnios exploratórios que as oprimiam e exploravam, coincide com a data da maior festa popular do país, o Carnaval. Sem negarmos o tom contestador que os bailes, os blocos e bandas e os trajes, eventualmente ilustram, a proximidade destas datas, a de luta das mulheres com a do festival, causa uma sensação estranha e complexa para a militância, pois altera momentaneamente o caráter arrebatador do protagonismo que o dia 8 de março (8M) veio adquirindo ao longo dos últimos anos.
Faz apenas alguns meses que o Brasil promulgou uma nova legislação de combate ao “assédio” (nome popular dado ao crime de “importunação sexual”, agora devidamente tipificado), alimentando a expectativa de milhares de foliãs de que nesse carnaval haveria uma condição de brincadeira mais saudável e respeitosa, com a promessa de maior liberdade e segurança para os corpos femininos, apesar do momento de acirramento dos conflitos ideológicos pelo país e do destacado aprofundamento do conservadorismo. Muito embora a imprensa tenha alardeado a existência dessa nova norma nos dias iniciais do evento, nada mais foi analisado ou comentado acerca do possível impacto da lei sobre o comportamento dos homens durante a festa, deixando passar a chance de conduzir um debate essencial.
Sem embargo, segundo dados recentemente divulgados por diversos meios de comunicação, o feminicídio – característico da violência de gênero – vem batendo recordes históricos no país: foram registrados, em todo o Brasil, 1.173 casos em 2018 (12% acima do ano anterior, quando o Brasil já concentrava 40% desse tipo de crime na América Latina, segundo informação da Organização dos Estados Americanos – OEA). Além disso, pesquisas de opinião mostram que as mulheres permanecem amedrontadas e violentadas no seu cotidiano, quando, por exemplo, vão utilizar o transporte público para ir e para voltar do trabalho, ou quando, em outro exemplo, estão num singelo final de semana com a família em casa, e o cônjuge resolve ultrapassar os limites da relação e da razão.
Essa indiferença que caracteriza o Brasil contemporâneo revela que as reinvindicações dos movimentos de mulheres permanecem urgentes e que não basta a simples criação de leis e outras sanções ou instrumentos punitivos se as culturas do machismo e da misoginia, bases do patriarcado, não forem enfrentadas diretamente todos os dias, por cada um, e em todos os lugares. Para tanto, a rápida e assustadora ascensão dos discursos de ódio na sociedade, que apresenta tendências de regressão a um grau de civilização típica do período feudal da humanidade, precisa ser denunciada, problematizada, e, com intensiva e permanente luta de mulheres e de seus parceiros (dotados de consciência crítica), controlada e superada. Não se trata de uma bandeira exclusivamente feminista, mas sim de uma necessidade política geral, das mulheres e dos homens, que deve ser contextualizada na dinâmica social mais ampla.
Vejamos como se dá a ruptura desses limites categóricos, do problema particular para o universal, ao relembrarmos o atentado que tirou a vida de Marielle Franco, vereadora da cidade do Rio de Janeiro, que tinha sido recém-eleita à época, e que vitimou também seu motorista Anderson Gomes, tendo como única sobrevivente a sua assessora Fernanda Chaves, ocorrido há um ano no bairro popular do Estácio. Não podemos considerar como uma triste coincidência o crime ter ocorrido no dia 14 desse mesmo mês dedicado ao respeito às mulheres, minutos depois de a vereadora ter participado de uma reunião política de mulheres negras no centro da cidade, e poucos dias depois de ela ter denunciado uma série de abusos de agentes públicos de segurança e ter discutido na plenária da Câmara de Vereadores com um homem que tentava atrapalhar a sua fala a respeito desses assuntos, ao que Marielle, altiva, respondeu: “Não serei interrompida!” 1.
Marielle representava diversas posições ao mesmo tempo, ao se pronunciar a favor do respeito e da dignidade no tratamento para com as populações moradoras das favelas e periferias; ao cobrar do poder público o fornecimento de infraestrutura adequada de escolas e de creches para que as mulheres pudessem trabalhar seguras de que seus filhos estariam se desenvolvendo como cidadãos; ao denunciar as mortes da juventude negra alvo do extermínio promovido pelas forças de segurança oficiais. A escritora e documentarista Eliane Brum, em coluna escrita de forma magistral para o El País, sintetiza bem essa leitura da pessoa: “Marielle Franco acolhia em seu corpo todas as minorias esmagadas durante 500 anos de Brasil. Seu corpo era um mostruário, uma instalação viva, da emergência dos Brasis historicamente silenciados”.
É notável a sordidez da conformação social que permite (e com isso naturaliza) a execução de uma pessoa como Marielle, que nunca havia sofrido uma ameaça sequer, mas logo pôde ser “apagada” da vida pública por apenas começar a causar o mesmo tipo de incômodo que o amigo e padrinho na vida politica, Marcelo Freixo, se dispõe a realizar há pelo menos dez anos, ainda que sob constantes ameaças de assassinato, não consumadas talvez por razão de sua escolta oficial, mas ainda assim, não consumadas. O que se pretende destacar aqui é a “oportunidade” de viver que se dá para um “tipo” de militante dos direitos humanos (homem, branco, classe média – isto é, não-pobre) em contraste ao total desprezo à vida de outro “tipo” de indivíduo com a mesma atuação política, mas representante de outra parcela da realidade social, aquela que está à margem do sistema e contra a qual se alimenta e estimula um ódio extremo.
Nos últimos dias, o Brasil (ou parte dele) tem se mantido chocado com a apuração desse assassinato (que é feminicídio, mas que também é genocídio, e “democracídio”): às vésperas de completar um ano, a polícia local efetivou a prisão dos executores da vereadora e, a partir das investigações, os relacionaram com grupos paramilitares que atuam como facções criminosas na cidade do Rio de Janeiro, as chamadas “milícias”. Outras informações ainda apontam ligações desses homens com parte da elite politica que saiu vencedora das últimas eleições gerais no país, notavelmente com a família do presidente eleito, Jair Bolsonaro. Algumas autoridades já admitiram que parte da demora dos investigadores em avançar ou em anunciar os resultados dos trabalhos se justificou pelo interesse de evitar influenciar o processo eleitoral do ano passado, o que levanta a pertinente dúvida de quem seria realmente prejudicado pela revelação da autoria do brutal assassinato que, até hoje, tem sua relevância, como fato político, questionada publicamente.
A morte de Marielle não foi suficiente para saciar o apetite voraz dessa estrutura do necropoder (para citar Achille Mbembe) como o próprio deputado Marcelo Freixo refletiu em entrevista recente ao portal da Carta Capital: “No dia seguinte à morte de Marielle, havia um grupo que queria matá-la novamente, por não aceitar que uma mulher negra, pobre e da favela estar na Câmara dos Vereadores e ser homenageada no mundo inteiro”. Isso, mais uma vez, evidencia a dimensão do desafio, que deixa de ser uma questão de defesa de direitos identitários e passa a ser um problema sensível à manutenção da democracia (que se encontra em risco desde o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, outro caso institucionalizado de violência de gênero). Pois, ao passo que minorias (mulheres, negros, comunidade LGBTQI, trabalhadores do campo, etc.) são desconsideradas, ameaçadas e, no limite, eliminadas (mesmo quando ocupam lugar de grande visibilidade e com relativo poder de ação, como era a posição de Marielle), prevalece a normalização do racismo, do machismo, da homofobia, da exploração de classe, enfim, da barbárie.
Para as mulheres e para os seus companheiros torna-se incontornável o imperativo de permanecer na luta e conquistar a condição de pleno respeito à vida de mulheres, e de negras, e de pessoas de origem pobre, e de povos indígenas, enfim, de todas as minorias. É desta forma que o atentado contra as vidas de Marielle, Anderson (vítimas fatais) e Fernanda (sobrevivente), representa um fato social que afronta o espírito genuíno das jornadas de março, e que, por isso, deve ser politizado ontem, hoje e sempre, inclusive ocupando espaço na maior vitrine do carnaval brasileiro, o desfile das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Foi na passarela que leva à Praça da Apoteose que o enredo vencedor da Mangueira celebrou e coroou a memória do colosso Marielle, ajudando a plantar novas sementes do seu propósito, e nutrindo a busca por justiça e igualdade.
Apesar de a homenagem do Dia Internacional da Mulher estar relacionada ao que ocorreu no passado, os atos políticos que observamos ao longo do mês de março continuam acontecendo e somando milhões de bravas mulheres, no Brasil e no mundo, nos festejos e nos protestos. Independente da forma, a unidade de todas e todos se constrói por uma necessidade sufocante de vencer os instrumentos institucionais de opressão e de violência que permanecem no presente, e pela convicção de que é possível superar a lógica trágica, selvagem e cruel, que nos afasta do ideal de humanidade.
Marielle vive! Carolina Maria de Jesus vive! Mas essa é outra história…
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